JORNAL PÚBLICO, 26.12.2015
Por merecer uma leitura mais demorada, transcrevo um artigo do jornal Público de hoje (link no final).
Quando o autocontrolo ajuda a controlar o jogo
NUNO SOUSA 26/12/2015 - 08:29
A função de árbitro continua a atrair milhares de interessados em Portugal, com os números a crescerem 40,1% desde 1996. De onde vem esse apelo? E que ferramentas, para além das regras, devem dominar? O PÚBLICO foi procurar respostas.
O máximo a que podem aspirar num jogo é passarem despercebidos. Essa é a vitória possível num tabuleiro em que mesmo as decisões acertadas que tomam desagradam a uma das partes. Aqui, neste núcleo restrito, a palavra-chave é discrição. O protagonismo é para os outros. Para os atletas, claro, para os treinadores, algumas vezes para os dirigentes, nem sempre pelas melhores razões. Ser árbitro é, num certo sentido, respirar autoconfiança. Como tão bem fazia o italiano Pierluigi Collina, autor de uma das melhores definições para a função: “O melhor árbitro é aquele que tem coragem de tomar decisões, mesmo quando seria mais fácil não as tomar".
O que leva, então, alguém a optar por uma carreira na arbitragem, especialmente num país em que a cultura desportiva deixa muito a desejar?
A pergunta tem resposta na primeira pessoa, nos testemunhos publicados nas páginas que se seguem, mas os números ajudam pelo menos a perceber que o fenómeno tem angariado adeptos ao longo dos anos. Desde 1996, ano em que o Instituto Português do Desporto e da Juventude (IPDJ) começou a disponibilizar dados segmentados sobre o sector, o total de árbitros e juízes federados aumentou 40,1%, de 9470 para 13.350 em 2014. Se o termo de comparação for a última década, o acréscimo é de 1077 elementos. É verdade que, ao longo destes 18 anos, houve algumas oscilações (com um pico de 16.395 em 2009), mas a tendência geral é de efectivo crescimento.
A pergunta tem resposta na primeira pessoa, nos testemunhos publicados nas páginas que se seguem, mas os números ajudam pelo menos a perceber que o fenómeno tem angariado adeptos ao longo dos anos. Desde 1996, ano em que o Instituto Português do Desporto e da Juventude (IPDJ) começou a disponibilizar dados segmentados sobre o sector, o total de árbitros e juízes federados aumentou 40,1%, de 9470 para 13.350 em 2014. Se o termo de comparação for a última década, o acréscimo é de 1077 elementos. É verdade que, ao longo destes 18 anos, houve algumas oscilações (com um pico de 16.395 em 2009), mas a tendência geral é de efectivo crescimento.
Walter Broeckx, um árbitro de futebol belga que escreve regularmente análises sobre prestações dos juízes, com especial enfoque nos jogos da Premier League, deixa três conselhos simples para se desempenhar a função: nunca desistir, manter a concentração e, com uma pitada de humor, ser-se surdo. Mas o trabalho psicológico por detrás de uma boa actuação é muito mais profundo.
Pedro Almeida, psicólogo do Desporto e docente no ISPA (Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida), ajuda-nos a reflectir sobre o tema: “Em primeira linha, é preciso ter em conta questões relacionadas com o controlo emocional, por forma a evitar emoções menos favoráveis ao rendimento desportivo. Depois, questões de foco atencional. É fundamental um árbitro estar focado num conjunto de aspectos relevantes e não noutras coisas acessórias. E isso cruza-se com o aspecto anterior. Muitas vezes são as emoções que o vão fazendo dispersar”, expõe, em conversa com o PÚBLICO, aludindo “às pistas relavantes da tarefa”, à necessidade de não ficar retido no erro anterior.
A estas duas vertentes juntam-se, naturalmente, a capacidade de tomada de decisão (é crucial adquirir mecanismos de julgamento), a gestão da motivação (ser capaz de ir formulando objectivos para si próprio para se manter activo), o domínio da autoconfiança (“o excesso ou falta de autoconfiança podem ser prejudiciais”, explica Pedro Almeida) e, por fim, a questão de comunicação (a forma como o árbitro se relaciona com os outros). “É importante conseguir ler as emoções dos outros, pôr a inteligência emocional ao serviço da comunicação”, completa.
Há uma abordagem, porém, que o investigador de Psicologia do Desporto considera nuclear e que servirá de base de partida para a prestação dos juízes: a filosofia de actuação. “Parece-me fundamental definir os valores que se gostaria de defender enquanto árbitro e a linha que não se está disposto a cruzar. Este é um aspecto central”.
O volume de competências
De entre o conjunto de federações consideradas pelo IPDJ, a que rege o futebol, o futsal e o futebol de praia é a que reúne um maior número de árbitros. Foram 3383 no ano passado, sendo que a segunda disciplina com maior número de juízes, o atletismo, agrega menos de metade: 1561.
José Neto, licenciado em Educação Física e Mestre em Psicologia Desportiva, ajudou, no final da década de 1990, a organizar e sistematizar os centros de treino para a arbitragem, com relva sintética, para simular as condições de jogo. Às componentes mentais, o também formador da UEFA anexa a importância da condição física: “Um árbitro corre 11 ou 12 km por jogo, em corrida lenta e rápida, à frente e à retaguarda, por isso há condicionantes que têm de ser trabalhadas, como a capacidade de resistência. Trabalha-se, por exemplo, com a frequência cardíaca. Há muitos dados de investigação nesta área”.
Estas são as especificidades do futebol, mas há princípios que se aplicam de forma transversal. “É preciso capacidade de resistência ao conflito, juntar à competência técnica o valor humano. E trabalhar a autoconfiança é meio caminho andado”, expõe José Neto, insistindo na ideia de que um árbitro deverá reunir “um grande volume de competências psicológicas, físicas e fisiológicas”.
A verdadeira avaliação de um desportista, porém, faz-se em campo, no entender do especialista. “A melhor maneira de avaliar um indivíduo é vê-lo a actuar. Percebe-se melhor a personalidade de um árbitro em acção do que falando com ele durante um mês, porque reverte na dinâmica as suas virtudes e defeitos”, explana.
A gestão do fracasso
Mas não são apenas as ferramentas para optimizar a performance que devem ser tidas em conta. O pós-jogo, especialmente quando a actuação choca de frente com as expectativas, merece especial atenção. Lidar com o fracasso e ultrapassar a desilusão fazem parte do crescimento, mesmo quando os demais mecanismos já estão apurados.
Da mesma forma que defende que um árbitro não deve expor-se em demasia quando o jogo lhe corre de feição (“O melhor momento para abrilhantar o êxito é curvar-se perante o silêncio”), José Neto também aconselha cautela na gestão do erro. “O árbitro tem de se refugiar no seu sacrário de entendimento pessoal”.
Neste particular, o caminho que resulta para uns é ineficaz para outros, por isso, Pedro Almeida alerta para a necessidade de avaliar caso a caso. “As estratégias de gestão emocional são muito individuais”, sublinha, chamando a atenção para a premência de saber também lidar com o erro que é detectado ainda durante o encontro. “Há dimensões de gestão do pensamento fundamentais para que o árbitro continue a ter a sua performance. A capacidade de gestão do diálogo interno, de empurrar a análise da questão para o final do jogo. Não se pode avaliar a performance enquanto estamos a gerir a performance”, elenca o docente do ISPA.
No fundo, acabamos por regressar quase sempre ao controlo e à gestão das emoções. E para que aprendam a geri-las, acrescenta António Fidalgo, é preciso dar antes o primeiro passo. “O árbitro não está imune a viver os factos de forma emocional e pode ter dificuldade em reconhecer as emoções, que só podem ser controladas depois de reconhecidas”, prossegue o coach, com certificação em Programação Neuro-Linguística .
Fundamental é “não deixar a emoção comandar a razão”, sendo que, para o antigo guarda-redes e posteriormente treinador, é determinante o trabalho que se desenvolve a nível individual para se atingir o “equilíbrio emocional”.
Uma vez atingido este patamar, segue-se o enfoque sobre a optimização dos níveis de concentração e de autoconfiança. “É crucial tomar atenção ao que é principal e desvalorizar o que é acessório. Depois, adequar os comportamentos do árbitro ao contexto. Além de aplicarem as leis, têm também de gerir o jogo, têm de ser capazes de comunicar de forma eficaz com os jogadores”, insiste António Fidalgo.
Quanto mais competentes forem os juízes no domínio desta teia psicológica, mais perto estarão do sucesso e mais capacidade terão para controlar as pressões que sofrem. A pressão, esse “inimigo” que retira a muitos o prazer de apitar, pode pelo menos ser controlada. “Não há nenhum ser humano que esteja totalmente imune a pressões”.
Fonte: http://www.publico.pt/desporto/noticia/quando-o-autocontrolo--ajuda-a-controlar-o-jogo-1718436
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